A prisão do devedor de alimentos e o coronavírus: o calvário continua para o credor
- IBDFAM - Conrado Paulino da Rosa e Cristiano
- 6 de abr. de 2020
- 5 min de leitura
A execução decorrente de inadimplemento alimentar é um fator contínuo e de dificílima solução nas Varas de Família em todo o Brasil.
As agruras e dificuldades em efetivar o crédito alimentícia (que, não se olvide, tem íntima ligação com a dignidade humana) fez com que a Carta Constitucional autorizasse, unicamente para esse caso, a prisão civil do devedor de alimentos, como meio de coerção.
Exatamente com essa preocupação em conferir efetividade ao especial crédito alimentício, uma das grandes novidades apresentadas pelo Diploma Processual Civil de 2015 foi, consoante as molduras do art. 528, a possibilidade de que o devedor alimentício seja preso, pelo prazo de um a três meses, em regime fechado, explicitando que não se trata de medida punitiva, mas coercitiva.
Bem por isso, é de se notar que, corretamente, foi sedimentado o entendimento de que os beneplácitos concedidos pela legislação processual penal para o preso comum não se aplicam ao devedor de alimentos encarcerado. Nesse sentido, inclusive, o TJRS, com acerto, negou direito a cela especial a um devedor alimentar (TJRS, Ac. 7a Câm. Cív., AgInstr. 70076304948 - comarca de Santa Maria, rel. Des. Jorge Luis Dall’Agnol, j. 30.5.2018). E o motivo é bem lógico: são medidas segregaríeis de naturezas diferenciadas, com propósitos bem distintos. Não se quer punir o devedor do alimentos, mas coagi-lo, exortá-lo, ao adimplemento.
A premissa metodológica em que se assenta a prisão civil na execução alimentícia, destarte, é a sua distinção ontológica em relação à prisão sancionatória, de índole penal. São medidas diferentes, lastreadas em pressupostos distintos!
Para além disso, observe-se que, em homenagem necessária ao devido processo legal, de envergadura constitucional (CF, art. 5º, LV), até que se efetive a prisão (como medida de coerção, insista-se à exaustão) um longo e demorado caminho há de ser trilhado: i) o credor (prejudicado e precisando da verba para se alimentar) formula o pedido; ii) o devedor é intimado (ou citado, a depender do caso) para pagar ou justificar o débito (o que, não raro, é um tormento lento e aluviônico, marcado, às vezes, por muitas e muitas tentativas frustradas); iii) o devedor, então, justifica (SIM, ele pode não pagar e justificar que não conseguiu alimentar o seu credor, embora esteja ele sobrevivendo); iv) o Promotor de Justiça se manifesta como custos Juris; v) e o juiz, à luz de pífias justificativas, finalmente, consegue determinar a prisão do inadimplente.
A mais pura verdade é que este calvário, uma verdadeira via crucis, tem duração média de quase um ano - nas varas de família menos sobrecarregadas, por óbvio. Não por uma mora deliberada de algum operador, mas pela própria dinâmica do sistema de excussão.
Pontue-se, inclusive, que, no mais das vezes, o devedor, em sua justificativa, tenta abrir espaço para discutir questões estranhas à fase executória, que, em verdade, deveriam ser objeto de análise em sede cognitiva, por meio de ação revisional, nos termos do art. 1.699 do Código Civil. Todavia, o credor ainda tem de se manifestar sobre pretensões desarrazoadas do devedor, em face do princípio da não-surpresa (CPC, art. 10).
Em meio a tudo isso, não se deixe de frisar, com base na prática forense, que a efetiva manutenção do devedor na prisão é uma ocorrência muito rara. O que se revela muito mais corriqueira é que, após meses (quiçá, anos) de espera do credor, quando o oficial de justiça consegue localizar o inadimplente, como em um “passe de mágica” (digno de uma aventura de Harry Potter), o dinheiro aparece. Indignado, em petições cheias de exclamações, ele informa ao juiz que, com a ajuda de sua família ou com um trabalho extra, efetua o pagamento exigido pelo desumano-credor – que, na verdade, apenas quer receber o que lhe é devido para fins alimentícios.
Somente em casos muito raros, quando a miraculosa aparição do dinheiro demora, o devedor, efetivamente, é recolhido ao estabelecimento prisional.
Em um outro lugar, na (demorada) espera do fim de seu “calvário”, o credor se vale de alguma providência – senão divina – de sua genitora ou de familiares solidários, para que o prato seja preenchido e o pão, multiplicado.
Atentos a esta inegável arquitetura da execução de alimentos, em sua realidade fática (e enfática), é que obtemperamos os termos da recomendação 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça, que autorizou a substituição da prisão em regime fechado do devedor de alimentos pelo regime domiciliar, como medida de contenção da pandemia causada pelo coronavírus.
Sem duvida, permeada dos melhores propósitos, o ato de recomendação (que já influenciando vários Tribunais brasileiros), certamente, terminará por contribuir, sem perceber, para um aumento significativo do inadimplemento alimentício. Isso porque, em prisão domiciliar, sob o ponto de vista prático, já estão todas as pessoas, durante esse período de confinamento. Por conseguinte, para o devedor restou esvaziada qualquer pretensão coercitiva. Ele não sentirá qualquer coação, exortando-o ao adimplemento.
E, tudo isso, sem contra que, para o credor, o término (tão aguardado!) do seu calvário representará esvaziado e sem qualquer efetividade, beirando um atentado à sua dignidade - e da própria Justiça.
Duvida não há sobre a singularidade, delicadeza e dificuldades desse momento. Todavia, a determinação de prisão domiciliar ao devedor de alimentos, em circunstância símile a toda a população, acarretará um incentivo à desídia e ao bom senso.
Propomos que soluções outras sejam abraçadas, com uso da proporcionalidade e razoabilidade, como o isolamento do devedor, quando possível ou a sua transferência, se preciso. Também se poderia prospectar soluções casuísticas que permitissem conceder proteção ao inadimplente, sem sacrificar o (já prejudicado) credor. Não se pode é proteger um dos sujeitos com absoluto e exclusivo sacrifico do outro!!! Outrossim, uma boa alternativa seria a suspensão do de

creto prisional durante o período de confinamento. Tão logo o funcionamento do Poder Judiciário seja aberto ao atendimento público, de imediato, a prisão poderia voltar a ser realizada.
E, em arremate, advertimos os atores processuais para uma situação real: a considerar a aplicação da medida de prisão domiciliar recomendada, é melhor para o credor desistir da prisão como meio coercitivo, variando na utilização da técnica de execução, conforme permissivo do STJ (STJ, Ac. 3a T., REsp 1.733.697/RS, Rel. Min. Nancy Andrighi). Isso porque, como a normatividade de regência não permite duas medidas prisionais pelo mesmo período de dívida, não tendo sido usada a coerção pessoal neste momento (se vier a ser convertida em prisão domiciliar), o credor pode útilizá-la após o confinamento, desta vez, sem conversão em prisão domiciliar. Não perde, assim, a possibilidade de uso e efetivo e concreto da medida.
De todo modo, o que se espera é que o credor sobreviva ao calvário, afinal de contas, além de lutar contra o coronavírus, precisa, também, sobreviver à fome...
[1] Advogado. Membro da diretoria do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM / Seção RS. Presidente da Comissão Especial de Direito de Família e Sucessões da OAB/RS. Pós-Doutor em Direito – Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Serviço Social – PUCRS. Mestre em Direito pela UNISC, com a defesa realizada perante a Università Degli Studi di Napoli Federico II, na Itália. Professor do Curso de Direito da Faculdade do Ministério Público – FMP, em Porto Alegre, onde coordena a Pós Graduação presencial e EAD em Direito de Família e Sucessões. Professor do “Meu Curso”, em São Paulo. Autor de obras sobre direito de família, sucessões e mediação de conflitos.
[2] Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Mestre em Ciências da Família na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica do Salvador - UCSal. Professor de Direito Civil da Faculdade Baiana de Direito e do Complexo de Ensino Renato Saraiva. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM. Autor de diversos livros de direito civil.